Depois de visitarmos a Praia do Tarrafal, fomos visitar o Campo de Concentração, conhecido como o campo da morte lenta.
Ao falar do concelho de Tarrafal, temos de dar ênfase à sua dimensão histórica e conhecer o percurso do regime salazarista que encaminhou uma enorme massa humana para o campo de concentração por ser considerado um dos lugares mais inóspitos de Cabo Verde. Hoje, transformado em Museu de Resistência, o edifício que albergava políticos guarda a trágica memória da luta contra o fascismo.
Nos anos 20 do século passado vivia-se em toda Europa um período de
grande crise social e política. Os grupos financeiros e as classes
dominantes queriam reconstituir e reforçar o seu poder, abalado com a I
Grande Guerra, de 1914-18. As camadas populares, com os trabalhadores na
primeira linha, procuravam o reconhecimento dos seus direitos sociais e
económicos, com um ânimo em grande parte estimulado pelo avanço desses
direitos na Rússia, após a revolução soviética de 1917. E o anti comunismo foi a bandeira que as forças políticas mais reaccionárias
ergueram para fundamento da sua expressão mais agressiva que então
começava crescendo no mundo: o nazi-fascismo.
Em 1926, a maré reaccionária que alastrava na Europa chegou a Portugal. A
28 de Maio um golpe de Estado militar instaura a ditadura. Começou,
para o povo português, um período negro de repressão, obscurantismo,
miséria e opressão, que se prolongou por quase meio século.
O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 fez Portugal um país sob
ocupação militar e policial, num regime de opressão, repressão e
exploração - a que chamaram «Estado Novo» e que encontrou em Salazar o
seu mentor.Salazar tomou como modelo as ditaduras fascistas de Mussolini
e de Hitler. Foi incondicional aliado de Franco na Guerra Civil
espanhola (1936-39) para a instauração da ditadura em Espanha. Apoiou as
ditaduras nazi-fascistas de Hitler e Mussolini, na II Guerra Mundial,
até à sua derrota militar.
As fotografias abaixo mostram a entrada para o agora Museu de Resistência e a vista para o Campo.
Mal passamos esta entrada, encontramos o que restou dos caminhos-de-ferro como mostra a fotografia abaixo.
A construção do caminho-de-ferro remonta à primeira fase de funcionamento do estabelecimento prisional, na década de 1940.
O rail road percorria uma distância de aproximadamente 1km, desde o poço que abastecia o Campo de água até ao Posto de Socorros e Cozinha. Eram dois vagões interligados, movido à força animal (boi). A água proveniente de uma fonte a uns 700metros do estabelecimento prisional era transportada em bidões do tamanho dos de petróleo. Trata-se atualmente da única amostra de uma linha Décauville existente em todo o território nacional.
Numa sala à direita existe uma sala com algum equipamento usado na altura.
O capacete à esquerda foi utilizado pela tropa angolana, e o da direita foi utilizado pela tropa portuguesa.
Este instrumento musical denomina-se como bandolim e foi utilizado pelo político português Hermínio Martins, morto no Campo de Concentração. Esta peça foi doada pelo ex-preso José Martins Romão.
Na imagem acima mostra o uniforme usado pelos presos políticos portugueses na Colónia Penal do Tarrafal de 1936-1953.
Após passarmos o portão, depois dos caminhos-de-ferro, temos mesmo à nossa frente o Posto de Socorros.
A enfermaria, inicialmente de madeira, era de dimensões reduzidas para albergar os muitos doentes e não apresentava condições de higiene, pois o soalho nunca era lavado, o mau-cheiro era uma presença constante, e os ratos e baratas infestavam o local.
A assistência médica era quase inexistente e no início do funcionamento da Colónia Penal, o Diretor não atendia às súplicas dos presos que adoeciam, alegando falta de verbas para dietas e medicamentos. Perante a frequência de doenças, em Fevereiro de 1937, o médico Esmeraldo Pais da Prata foi enviado ao Campo com o principal objetivo de verificar se os presos não fingiam estar doentes para se escaparem ao trabalho. O médico era apelidado de "Tralheira" pelos presos e as suas ações contribuíram bastante para o agravamento das condições de sobrevivência dos presos. Ele recusava-se a mandar ferver a água insalubre que vinha da fonte a uns 700 metros, aprovava o estado de deterioração das magras rações distribuídas aos presos, dava cobertura aos trabalhos forçados e aos castigos na "Frigideira", negava a medicação, desviava os medicamentos enviados pelas famílias dos deportados, participava diretamente, de arma na mão, na repressão aos presos, insultando ou dirigindo-lhes frequentemente frases jocosas.
Os presos padeciam de várias doenças, sendo o paludismo, a biliosa, a tuberculose e as infeções intestinais os mais frequentes no Campo.
Apesar dos medicamentos sonegados e das proibições de ferver a água, os presos conseguiam resistir por meio de uma forte rede de solidariedade entre eles. Ferviam a água às escondidas, com ferramentas improvisadas, construíam filtros de pedra vulcânica e porosa, organizavam a distribuição comunitária de medicamentos e outros recursos parcos, recebidos das famílias e das organizações de caridade.
Na fotografia acima está uma requisição de medicamentos assinados pelo enfermeiro Pedro Caetano de Sá e pelo dirigente João Bernardo Vieira.
A chegada do preso Manuel Baptista dos Reis, um médico, que era auxiliado por Virgílio de Sousa, um enfermeiro, foi decisiva para que o número de mortes não registasse uma cifra ainda maior.
Ao sair do Posto de Socorros, do lado direito, encontramos um monumento onde consta os nomes portugueses que deram a vida pela liberdade, assim como os nomes portugueses da liberdade (segunda fotografia abaixo). No total, faleceram no Campo de Concentração 36 pessoas: 32 portugueses, 2 guineenses e 2 angolanos. De todas as enfermidades, a biliosa, provocada pela picada do mosquito, foi a que mais vidas ceifou no Tarrafal.
De frente para o Posto de Socorros, podemos virar à esquerda ou à direita. Os presos eram internados separadamente, em diferentes pavilhões: o bloco da esquerda (Pavilhão B), que era totalmente ocupado pelos presos políticos e de delito comum da Providência de Cabo Verde; e o bloco da direita (Pavilhão A),que se destinava aos presos políticos de Angola e Guiné. A preocupação fundamental centrava-se na questão de evitar o contacto de proximidade entre as diferentes categorias de presos.
O Campo de Concentração funcionava também como uma espécie de "casa de força", cujas regras se baseavam numa monarquia hierárquica, imposta verticalmente a partir do Diretor. O regulamento prisional formulado pelo Diretor Queimado Pinto, procurava a "morte" lenta dos internados nas suas várias dimensões: civil, política, ideológica e física.
O regime prisional, a alimentação, o trabalho, a disciplina, a censura das correspondências, dos livros e jornais, as deficientes condições de assistência sanitária, o isolamento, faziam parte da armadura repressiva no interior do Campo.
Para sobreviverem, os reclusos conseguiam a conivência dos guardas que, a troco de algum dinheiro, abrandavam as medidas, contornavam o regulamento, e forneciam aos presos certos produtos em falta no Campo como sabão, livros e jornais.
Viramos à direita. Encontramos a Cela dos Presos Políticos Guineenses.
Na imagem acima podemos observar o espaço onde os presos ficavam. Todos juntos! O espaço pode parecer enorme, mas na altura não havia espaço nenhum dada a quantidade de presos que ali viveram. Ao fundo, situam-se as casas de banho, como se pode ver nas imagens abaixo.
Ao lado desta cela, ficava também a cela dos Presos Políticos Angolanos que era igual em termos de espaço.
Em frente a estas celas, havia um Refeitório (que estava fechado e por isso, não conseguimos ver), e uma Oficina.
Nas imagens acima, podemos ver mais uma cela, no qual o espaço é semelhante ao das celas dos Políticos.
De seguida, visitamos a Cela Disciplinar, como mostram as figuras abaixo. Nesta cela, há celas individuais para os presos. São as chamadas células disciplinadoras. Os maus tratos, tais como isolamento, humilhações, a postura de estátua, tortura do sono, o segredo, os espancamentos, eram algumas das práticas desumanas, devidamente aprovadas pela cúpula do regime fascista.
Neste particular, a "Frigideira", célula construída logo após a tentativa de fuga coletiva realizada a 2 de Agosto de 1937, constituiu o instrumento maior no esforço de perpetuar os castigos. As dimensões reduzidas da cela, sem janelas, à semelhança de uma caixa-forte, construída longe de qualquer ponto que pudesse proporcionar sombra, originavam um cenário lúgubre.
Os presos na "Frigideira" tinham de suportar temperaturas que atingiam os 50ºC, ar denso devido à falta de renovação do mesmo e devido aos dejetos dos reclusos, dieta à base de pão e água, falta de assistência médica, doenças de foro intestinal e psíquico, impossibilidade de realizar a higiene pessoal e o isolamento em cela que poderia ascender aos 70 dias.
Tais condições pioravam quando
se aglomerava certo número de reclusos na "Frigideira", pelos mais
diversos motivos, sendo o mais comum os protestos contra a redução do
rancho e a recusa a trabalhar. Aliás, o trabalho forçado, em especial na
construção dos próprios abarracamentos do Campo de Concentração,
constituiu outra marca da política repressiva ali executada.
Ah! Uma coisa muito interessante! Eles puseram um áudio em cada cela, de forma a que, quando entramos nas celas consigamos ouvir os barulhos originais das celas a abrir e a fechar, o que nos leva automaticamente para o passado, de forma a que seja mais fácil imaginar como era entrar numa cela.
(Sim, meti-me dentro de uma cela para tirar a fotografia que estão a ver em cima.)
No fundo da Cela, fica a "casa-de-banho", como podem observar na figura abaixo, onde possui apenas um buraco no chão, sem a possibilidade de realizarem a sua higiene pessoal.
Como podem observar, pelas imagens abaixo, o terreno era imenso, mas bastante protegido com arame farpado e muros.
Eles possuíam também de uma sala de Leitura, que se encontrava fechada. Só podiam ler livros e jornais mediante uma requisição bastante elaborada.
Novamente de frente para o Posto de Socorros, viramos à esquerda para o outro bloco.
Encontramos o bloco de Cela para presos de delito comum.
Esta cela é semelhante à cela dos presos políticos, sendo que todos ficam juntos.
Ao lado desta cela, encontra-se a cela dos presos políticos Cabo-verdianos (imagem abaixo).
Ao lado desta cela, encontra-se mais um refeitório, desta vez aberto. (imagem abaixo)
Nesta parte do campo, também há um bloco de celas disciplinares ("Frigideira") (imagem abaixo), que também é igual à do outro lado do campo.
Ao lado da "Frigideira" encontra-se a Lavandaria (imagem abaixo).
Ao lado deste Pavilhão (B), encontramos lá no meio o que pareciam ser casas-de-banho (não havia nada a indicar o que seria aquilo).
Logo ao lado, encontrava-se a Cozinha (imagem abaixo).
A cozinha era a única construção em pedra na primeira fase do Campo de Concentração. Os fogões eram construídos em tijolos. As louças ficavam no chão, ao pó, e muitas vezes eram usadas e reusadas sem serem lavadas. As imagens abaixo mostram os fogões.
Muitas vezes, as refeições eram confecionadas com produtos deteriorados, principalmente as carnes. Inúmeras vezes os presos encontraram casos de triquinose na carne de porco (infeção parasitária. Os animais ingeridos contêm um quisto com as respetivas larvas (triquina)).
Com frequência, eram servidas de forma dissimulada a carne de corvos, que abundavam no local.
Ao entrarmos na cozinha, deparamo-nos com um balcão no qual deviam preparar as refeições.
A dieta no Campo de Concentração era uma arma e foi utilizada para humilhar os presos, para além de ser uma das principais fontes de doenças como o beribéri, escorbuto, xeroftalmia, anemia, infeções intestinais, entre outras.
A comida era sempre a mesma, de péssima qualidade, diminuta e mal confecionada. Era de tal modo intragável que os presos tapavam as narinas com bolas de pão para conseguirem ingeri-la.
A dieta alimentar sofria alterações segundo o capricho da Direção do Campo. Quando o capitão Felipe Barros assumiu o cargo de Diretor, a carne passou a ser uma raridade e a dieta passou a ser à base de batata doce e abóbora.
O regime alimentar começava com o pequeno-almoço às 6 da manhã e resumia-se a café e pão. O almoço era servido às 10:45m e, na maioria das vezes, era composto por arroz, carne e, às vezes, massa. O jantar era servido às 17h e era uma sopa de legumes secos ou de arroz, um prato de arroz com carne ou peixe.
O arroz provinha da Guiné e era, a par do feijão, a ementa quotidiana. Tanto assim que o Diretor Eduardo Vieira Fontes viu-se obrigado a enviar ao chefe da Repartição de Finanças da Praia, os originais dos mapas diários de refeições, para pôr cobro ao boato de que em Tarrafal só se comia arroz e feijão.
A imagem acima mostra os mapas diários de refeições dos prisioneiros angolanos, datado de 1965.
No período de trabalho nas pedreiras, os reclusos compravam à população local frutas, ovos leite para ajudar a suprir as insuficiências da alimentação dentro do Campo.
Evolução:
A habilidade de Amílcar
Cabral na luta contra o colonialismo ficaria visível no uso da
diplomacia. Evocou as regras da Convenção de Genebra sob a proteção dos
prisioneiros de Guerra e, num ato arrojado de mediação, conseguiu a
libertação de 3 prisioneiros portugueses, entregando-os à Cruz Vermelha
em Dakar a 1968. Ao mesmo tempo, denunciou firmemente as condições de
internamento no Campo de Concentração do Tarrafal.
Em 1969, as condições do Campo já não eram as mesmas do que nos anos 30, 40 e 50 dado que os prisioneiros já podiam ir à praia, assistir a sessões de cinema, consultar livros, jornais e revistas na biblioteca, acederem a consultas médicas no Hospital da Praia e estudar/realizar exames no liceu da Praia.A visita da Cruz Vermelha Internacional ao Campo teve os seus efeitos imediatos. Foram soltos todos os presos considerados "recuperados" e, para aqueles que ainda tinham de cumprir pena, foram flexibilizadas as normas de detenção.
Em 1971, quando a Cruz Vermelha visitou novamente o Campo, os Guineenses já lá não estavam, pois permaneceram lá até 1969.
Terminou a nossa visita ao
Campo de Concentração e espero que tenham gostado tanto quanto eu!
(apesar de ser só por imagens e texto)
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